6 de abr. de 2016

Paul Bocuse - O Mago do Fogâo e La Cuisine des Terroirs


        Certamente a nova culinária francesa - nouvelle cuisine française - não foi a criação de um só chefe, mas resultado do esforço coletivo de inúmeros chefes importantes como Roger Vergé; Michel Guérard; Fernand Point, este considerado por muitos o introdutor da nova culinária e chefe formador de renomados cozinheiros como Alain Chapel; François Bise; Louis Outhier; Georges Perrier; Jean e Pierre Troisgros e Paul Bocuse,  apenas para citar os principais dentre tantos que se dedicaram para disseminar mundialmente os novos conceitos da moderna gastronomia.

        No entanto, mesmo em meio a esse universo fantásticos de chefes é impossível falar da nouvelle cuisine française sem fazer menção especial a Paul Bocuse, o principal divulgador da nova gastronomia francesa, o mais influente chefe do século 20, o mais inovador e o chefe com a carreira mais duradoura na lista de grande nomes que pontuaram e pontuam na difícil arte culinária da alta gastronomia.



        O “mago do fogão”, Bocuse foi o primeiro a se tornar grife e estrela da cozinha globalizada, tendo recebido, aos 85 anos, em New York, o prêmio de “chef do Século”, concedido pelo prestigioso Culinary Institute of América, que o nomeou como "o mais emblemático chef de todos os tempos".

        Ao se ouvir a frase preferida de Bocuse: “Todas as manhãs (...) vou ao mercado...” editada no prefácio do seu livro “La Cuisine de Marché", não fica difícil entender a filosofia que o levou a revolução iniciada nos anos 50 na culinárioa francesa, criando a nouvelle cuisine, que se espalhou mundo a fora e se incorporou definitivamente ao dia-a-dia das pessoas nos quatro cantos do planeta, de maneira sutil e irreversível, mudando hábitos alimentares e alterando a cultura gastronômica em muitos lugares.

        O parágrafo inicial do livro de Paul Bocuse é uma ode a essa onda de prazer culinário levada às mesas pela nouvelle cuisine e sintetiza toda a filosofia que move a sua criação: “... ao comprar pessoalmente os produtos que utilizo, sei onde achar as melhores alcachofras, os espinafres mais frescos e sei quem, naquele dia, levou uns queijos de cabra deliciosos. Às vezes não sei que pratos devo preparar para o almoço, o que decido apenas durante a minha visita ao mercado e é isto, na minha opinião, que faz a boa cozinha".  Alguém tem dúvidas quanto a isso?...


      Na realidade o embrião da nouvelle cuisine, teve início com o chefe Fernand Point, no restaurante de sua propriedade, o La Pyramide, um 3 estrelas instalado na pequena cidade de Vienne, próxima a Lyon, que se tornou a meca da alta gastronomia. Chefe Point, que jamais publicou um livro de culinária, foi mentor de expoentes da culinária e somente admitia o uso de ingredientes frescos, preparados na hora, em sua cozinha, jamais admitindo que pratos fossem preparados de um dia para outro.  


      Discípulo de Fernand Point, Paul Bocuse foi quem desenvolveu na França, nas décadas de 60 e 70 os principais conceitos dessa nova gastronomia, que rompia com velhos conceitos e muitos preconceitos das cozinhas clássica e tradicional francesas, tão arraigados na cultura gastronômica do País naquela época. 

Rouget barbet em écailles de pommes dês terre croustillantes

       A nouvelle cuisine caracterizou-se por ser uma culinária elaborada em pouco tempo, com molhos mais leves e em menores porções, apresentados de forma sofisticada e decorativa seguindo a inspiração do minimalismo japonês como inspiração para decoração dos pratos. Moderna e inventiva, a nova técnica culinária incorporou também novas combinações oriundas de outros países, mantendo, no entanto, o rigor da técnica francesa para elaboração dos pratos, coisa impensável diante do rigor da culinária clássica.

     Nascido e criado em Lyon, Bocuse trabalha há mais de 50 anos diariamente em seu festejado restaurante 3 estrelas, L’Auberge Du Pont de Collonges. Na cozinha Bocuse ensina os caminhos dessa culinária sofisticada, que é, ao mesmo tempo, saudável e alegre, valorizando o sabor natural dos alimentos, pela maneira como se deve observar o entorno culinário e de privilegiar sempre o próprio "terroir", ou caso não se disponha de um para tanto, pelo menos ao nosso quintal ou às fazendas e granjas locais. 


       Essa é a regra que move a moderna gastronomia, onde só se utilizam ingredientes frescos, em que os produtos estejam em estação e que esses ingredientes tenham seus valores e sua presença ressaltados nos pratos, jamais encobertos por toneladas de creme e molhos pesados, que foram substituído por purês de legumes. Uma gastronomia onde se utilize a técnica clássica, como meio para elaborar os produtos, mas o paladar seja o principal ingrediente a ser ressaltado nos pratos. E esses conceitos já foram de tal forma incorporadas e aceitos pela cultura gastronômica mundial, que nem parecem mais ter a contundência e rigidez dos primeiros tempos da revolução culinária, nos anos 70.

      As histórias sobre o surgimento da nouvelle cuisine são muitas e "em cada canto se aumenta um ponto". O jornalista Antonio Ribeiro, correspondente da Veja em Paris, conta que "corria o anos de 1969, os críticos gastronômicos Henri Gault e Christian Milau foram visitar Bocuse em Collonges. Antes de voltar a Paris, pediram ao chef um prato leva para não viajarem empanturrados. Bocuse cozinhou, rapidamente, vagens al dente, picou uma échalote (a saborosa cebola francesa) e deitou um filete de azeite em cima. Gault viu - só ele - o prato como a assinatura de um manifesto equivalente à nouvelle vague dos então jovens cineastas François Truffaut, Alain Resnais, Jean Luc Godard e Louis Malle. Ex-jornalista esportivo, Gault espalhou a novidade: "A  existe, eu a encontrei". Bocuse, porém, continuou fazendo o que sempre fez, sem nunca ter reivindicado a autoria do movimento ("a única coisa que mudou na minha vida foram os lençois da minha cama")".


      A nouvelle cuisine, no entanto, cumpriu uma trajetória muito pouco nobre, cooptada que foi pela mediocridade do mercado de consumo que  não preserva princípios e tampouco respeita técnicas ou idéias, foi subvertida em seus conceitos e teve sua concepção distorcida em relação a propostas de seus idealizadores, a ponto do próprio chefe Bocuse cunhar a frase:"tudo na conta, nada no prato", para definir o arremedo de nouvelle cuisine que se praticava mundo afora, inclusive em muitos restaurantes franceses.


       Criticado por não mais inovar no menu e na decoração de seus restaurantes bocuse responde: "Essa coisa de cortar uma ervilha em quatro partes não é comigo", decretando com certo desdém: "Se os senhores se referem à cozinha molecular, tenha o maior prazer em dizer que não a praticamos. Lamento também informná-los que ninguém come em museus nem vem aos meus restaurantes para comer as cortinas, só existe uma culinária: a boa".

      Na cozinha clássica francesa, o cozinheiro recebia a matéria-prima e devia trabalhá-la da melhor maneira possível para recriar os pratos canônicos e, muito raramente, ousar uma modificação. Modificar um prato na culinária clássica era considerado uma heresia, cuja pena, na melhor das hipóteses, seria a demissão do chefe atrevido, quando não a sua condenação ao limbo do anonimato gastronômico. Os cardápios deviam ser conhecidos de cor e salteado e repetidos pelos chefes, sem o menor erro ou deslize, e a sazonalidade e territorialidade eram combatidas, mesmo que por meio de artifícios de conservação, confits, conservas ou enlatados. O ideal da cozinha clássica era que fosse possível repeti-la em qualquer lugar, com a exatidão de uma coreografia muito bem ensaiada.

Soupe aux truffes noires V.G.E.
(sopa de trufas negras)

      A nouvelle cuisine rompeu com esse paradigma, enfiou o tempo e espaço pela cozinha adentro, deu ao cozinheiro o seu valor e reconhecimento, tornando-o não apenas um mero piloto de fogão, mas um pesquisador de produtos frescos e saudáveis, criou a primazia da qualidade dos alimentos, tornando-os  um dogma a ser respeitado, se não está bom o pato, se não estão perfeitas e em estação as frutas, então não se faz esta ou aquela receita.

      A geografia também é levada em conta, justamente isso que Bocuse busca no mercado local, o regional, o produto do "terroir". Basicamente foi uma inversão, fazer com que os produtos fossem o elemento determinante do cardápio, e exigindo dos chefs versatilidade e criatividade acima de qualquer outra qualidade, sem, no entanto, desprezar a boa técnica na elaboração dos ingredientes.

      Vencida a guerra, contra o tempo, Bocuse se permitiu reincorporar coisas deixadas de lado, reviu e releu a culinária de origem da "França de seus avós, já agora totalmente corrigida de seus excessos e com novas nuances. Recentemente o velho chefe declarou, entre irônico e brincalhão, que seu prato favorito é o pot-au-feu, o cozido francês, porque se pode comê-lo por três dias, em etapas. Nada mais básico, clássico e saboroso. 
Pot-au-Feu

       Pelo visto a boa e velha cozinha cuisine des terroirs - cozinha regional - dos nossos avós está de volta às mesas das melhores casas e restaurantes, agora travestida de novas riquezas cromáticas, produtos locais frescos, cujos sabores são ressaltados pela técnica perfeita e a apresentação impecável dos pratos.


  
40, Rue de la Plage - 69660 Collonges au Mont d'Or 
Lyon - France
Tel: 04 72 42 90 90