24 de ago. de 2016

CHARCUTERIA – A ARTE DE PRODUZIR EMBUTIDOS DE QUALIDADE

A expressão charcutaria deriva do francês “charcuterie”, que, por sua vez, é oriunda dos termos “chair” (carne) e “cuit” (cozido).



A definição técnica de charcuteria nos conduz ao entendimento de que se trata da arte de preparar produtos feitos à base de carne ou miúdos de porco, quer os de fabricação caseira, quer os industrializados, o que não corresponde exatamente à realidade. 


Essa associação distorcida da charcutaria exclusivamente à produção de lingüiças e aos cuidados com a carne de porco, constitui um engano, porquanto originalmente a contextualização nos remete a preservação de diversos tipos de carnes, como: aves, bovinos, suínos, peixes e outras carnes de caça, que são processadas de muitas formas, tais como a salga, conservação, cura, fermentação, cozimento, desidratação, defumação e, até mesmo, com a conjugação de vários desses métodos, obtendo-se produtos como salames, terrines, patês, mortadela, pastrame, copa, bacon, salsicha, lingüiças, presuntos, carnes de sol, bem como todas aquelas carnes conservadas em gordura ou defumadas. 

A charcutaria surgiu a partir da evolução da humanidade e se desenvolveu com a finalidade de preservação, principalmente das carnes, porquanto inexistia tecnologia ou método de referigeração adequada, que garantissem vida útil longa para os alimentos, representando um dos mais antigos métodos de processamento que sustentam o gênero humano. A preservação de alimentos, em especial das carnes, permitiu a humanidade sobreviver durante períodos de escassez e, mais importante, possibilitou as longas viagens de migração, onde nem sempre era possível se obter alimentos com constância e frescos.
As primeiras informações que se detém sobre a técnica de preservação de carnes, remonta aos primórdios da civilização humana, quando o caçador abatia um animal maior do que as suas necessidades, cortava-o em pedaços menores de carne, temperava com sal e ervas aromáticas e embutia nas tripas e bucho do próprio animal, previamente lavadas, armazenando para consumir depois.
A lingüiça, portanto, foi um dos primeiros embutidos inventados, ainda que sem esse nome “lingüiça”, que tem a ver com a palavra italiana “luganega” e que nos remete para os Lucanos, um povo de origem samnita, que se estabeleceu na Lucânia (atual região montanhosa da Itália meridional, a Basilicata), no século V a.C. Essa civilização tinha forte influência da civilização helênica.
O poeta Homero, em sua obra "Odisséia", escrita no século IX a.C já mencionava essa antiga forma de processamento de carne.

Petrônio (14 a.C – 66 d.C) na obra Satyricon, ao descrever a cena de Trimalchion, verseja: “Umas lingüiças fumegavam numa churrasqueira de prata, e debaixo da churrasqueira havia ameixas, damascos e grãos de romã...”. E mais adiante, em outro trecho: “...o cozinheiro colocou o avental, pegou a faca com a mão trêmula deu vários cortes na barriga do animal (do porco). Logo depois, pelas perfurações alargadas com habilidade, começaram a sair, devido a inclinação, pencas de chouriços e linguiças.”
Nas estradas de acesso à Roma Imperial existiam tendas onde eram vendidas liguiças de porco assadas em pequenos fogões a carvão.

Quando Constantino, o Grande (274 – 337) governava Roma, entre 306 e 337, depois de convertido ao Cristianismo, proibiu o consumo de lingüiça, porque era associada com festivais pagãos. Esta proibição perdurou por todo o seu governo, sendo abolida depois da sua morte, por causa dos protestos do povo romano.

No Império Romano eram consumidos diversos tipos de embutidos, que recebiam nomes como “farcimina”, “hillae”, os “circelli”, os “spirulae” e os “botulus”.
Embutidos ou enchidos, como se diz em Portugal, são produtos preparados com carne picada, triturada ou em forma de massa, agregada de temperos, aglutinantes e aditivos e embutida em invólucros naturais e artificiais, cozidas e algumas vezes defumadas, para consumo frio ou quente.

As técnicas e procedimentos para preparo de embutidos e similares são diversas e podem, em alguns casos, ser aplicados sequencialmente. Dentre os mais comuns podemos destacar os seguintes:

Sais de cura – nitrito de sódio e nitrato de sódio são conservantes aplicados em muitas  carnes conservadas, principalmente nas defumadas, pois evitam a proliferação de bactérias nocivas, como a causadora do botulismo(intoxicação pela exotoxina de Cloristidium botulinum e Cloristidium parabotulium). 

 Sal – O cloridrato de sódio promove um processo de osmose, salgando e liberando o excesso de água no interior da carne. Além disso também pode ser usado para frear e regular a fermentação de alguns produtos. Curar ou preservar alimentos com sal.

Acelerador de cura – é feito uso de antioxidantes que reagem com nitratos e nitritos para acelerar e homogeneizar a cor de curado. Também ajudam a prevenir o ranço. Podemos citar o ácido ascórbico(vitamina C) e o eritorbato de sódio;

Aromatizantes – pode ser utilizado o açúcar, glicose ou mel para dar amora, umidificar e auxiliar na obtenção de uma cor mais aprazível;

Temperos – ervas, pimentas e especiarias, aqui a única regra é a criatividade, o gosto e o bom senso;

Fermentadores – Muito utilizado em salames especiais, os fermentadores são aplicados com a salga da carne para remover a umidade, permitindo que as bactérias benéficas quebrem os açúcares em moléculas saborosas. Geralmente são usadas culturas de lactobacilos que geram ácidos graxos;

Defumação – a aplicação de fumaça, tanto quente como fria, ajuda na secagem e na preservação da carne;

Desidratação – Realizada com exposição direta ao sol, defumação quente ou defumação fria, exposição à correntes de ar, salga;

Estabilizantes – auxiliam na retenção de líquidos e gorduras, aumentando o rendimento e peso dos produtos. Temos os fosfatos e polifosfatos, proteína de soja, gomas(goma-curdlana, goma-arábica, goma-guar, goma-xantana) dentre outros;

Cocção – muitos produtos são cozidos ou assados, pois nem sempre é do desejo do charcuteiro aplicar algumas técnicas por tempo prolongado, como a defumação;

Marinada – normalmente o processo de marinar envolve também a acidificação da carne. Pois o ácido rompe as fibras da carne, amaciando e permitindo que o tempero entre para o interior do produto. Pode ser feita a imersão ou injeção da marinada na carne que descansará em refrigeração por algumas horas;

Salmoura – A salmoura é uma técnica mais apurada e lenta, mas traz retornos muito mais satisfatórios que a marinada, pois não necessariamenteo vai acidificar o produto e trará umidade elevada, principalmente para carnes muito magras, como peito de frango e partes do porco, como o lombo. 

Cada umas dessas técnicas pode ser discutida, pois as quantidades, procedimentos, tempos e tipos de carnes utilizadas geram resultados completamente diferentes, mesmo se aplicando métodos idênticos, o que pode, inclusive, aparentar um alto grau de complexidade, mas a charcutaria é uma das artes mais simples e belas da culinária, uma boa carne, sal e paciência já são suficientes para que a alquimia de sabores e aromas seja contemplada.
Os portugueses produzem uma grande variedade de embutidos, que não se limitam às “farinheiras”, confeccionadas com farinha, massa de pimentão, colorau e vinho e gordura de porco, servidas frita ou assada, como complemento ao cozido ou a feijoada. A farinheira foi criada pelos judeus portugueses durante a inquisição, como forma de simular o consumo de carne de porco, ou, ainda, as “alheiras, que, como o próprio nome explica, são elaboradas com pão, óleo de oliva, bastante alho e carne de porco ou de aves – durante a época da inquisição não era utilizada carne de porco -. 
Na região de traz os Montes, no norte de Portugal, além dos embutidos tradicionais, existem alguns muito especiais, seja no recheio ou mesmo na possibilidade de criatividade gastronômica, tais como:

O Butelo: Embutido da região de Bragança, utiliza carne de porco com pequenos pedaços de ossos, a carne escolhida é sempre a costela, rica em gordura.

Azedo: Embutido de carne de porco e pão, semelhante as alheiras, possui algumas diferenças nos temperos, menos alho na preparação.

Chourica: Embutido de sabor dorte, com muito tempero, que uriliza carne de porco, orégano, sal, pimenta do reino, água e vinho.

Salpicão:Embutido mais elaborado onde se utiliza lombo de porco e temperos, muito semelhante ao da chourica, porém mais leve em sabor.

Chouriço de Mel: Embutido sem carne, elaborado com umna mistura de nozes, mel, amêndoas, pão e muito pouco sal.

Portugal possui muita tradição na criação de suínos, razão pela qual a qualidade desses produtos preparadas lá é irretocável. Experimente e delicie-se pedindo um prato de lentilhas cozidas no caldo de legumes com rodelas de “chouriço” e pedaços de toucinho defumado, por exemplo.

 Também naquele país são confeccionadas as famosas “morcelas”, nada mais nada menos que embutidos preparados com o sangue do porco, além da sua gordura, de vinho, alho e pimenta do reino. Uma maneira inusitada de saboreá-la é a morcela frita acompanhada de purê de maçã.

 “Na Alemanha são produzidos mais de 1.500 tipos de salsicha (wurst). Cada região tem a sua peculiaridade, seja no tipo de carne utilizada (de porco, de vitela ou mista) e nos temperos.
Há festivais os mais diversos quando podem ser experimentadas algumas das opções existentes e, sempre, acompanhadas por molhos de mostarda clara e escura e imensos copos de cerveja! Muito comum, ainda na Alemanha, é comprar em barraquinhas na rua uma porção de salsichas grelhadas e fatiadas, acompanhadas de catchup picante e batatas fritas.
Nos Estados Unidos, principalmente em Nova Iorque, os hot dogs, nossos conhecidíssimos “cachorros-quentes”, são uma opção de lanche (ou mesmo de almoço!) para milhares de pessoas, diariamente. As salsichas, levadas da Alemanha para lá no início da década de 1900, fizeram e ainda fazem muito sucesso, servidas dentro de um pão apropriado e cobertas com um molho de cebola refogada. Além disso, é uma preparação barata...

Na França vários são os embutidos produzidos, muitos ainda de forma artesanal, de maneira a preservar todos seus sabores herdados pelas famílias produtoras e não são muito fáceis de se encontrar aqui no Brasil. Um deles é a anduille, de carne de porco, alho, pimenta, cebola e vinho, além de outros temperos. É para ser comida fatiada e fria, como aperitivo.

Há ainda o boudin blanc, preparado com carne de porco, vitela ou frango finamente moída, com cebolas, pedaços de pão e creme de leite, e o boudin noir, um chouriço preto ou vermelho-escuro, feito com sangue e gordura de porco, cebolas e creme de leite.
Há também as cervelas, de carne e gordura de porco, que são fervidas em água e servidas com mostarda e salada de batatas, e os saucissons: à la cendre, de carne de porco enrolado em cinzas, de sanglier, feito com carne de javali, ou o saucisson sec, tipo um salame.
Oriundos da Itália, conhecemos muito bem seus dois principais embutidos: os salames e a mortadela. Os primeiros são produzidos com uma mistura de carnes, normalmente suína e bovina, picadas e temperadas com sal, alho, ervas aromáticas, especiarias e pimenta, além de vinho. Alguns, industrializados, utilizam, ainda, carne de aves. São normalmente secos ao ar, por isso vemos muitos deles pendurados nos bares e restaurantes, ou seja, enquanto estão sendo “curados”.
Da região da Bologna vem a famosíssima mortadela, preparada com carne suína moída até se transformar numa pasta, acrescida de gordura também suína em pedaços, e temperada com sal, alho, pimenta e ervas aromáticas (algumas levam, também, pistache ou azeitonas) para então serem cozidas e posteriormente resfriadas e guardadas sob refrigeração. 
Uma das maneiras ideais para saboreá-la é cortar em fatias finíssimas e servi-la como recheio de um crocante pãozinho francês. Em São Paulo, no Mercado Municipal é famoso o sanduiche de mortadela no pão francês servido no box do Mané. 


Entre as carnes processadas nenhuma se iguala ao presunto cru espanhol "pata negra", não apenas na fama, mas no gosto também. Elaborado com porco ibérico, criados livres, cuja alimentação é especial, tornou-se um requinte nas mesas masi exigentes.
Embora muitos não considerem o presunto propriamente um "embutido", não se pode ignorar a qualidade dessas carnes curadas e salgadas, alguma defumadas, que atendem aos mais exigentes paladares gourmets, porém isso vou deixar para tratar em outro post.


Fontes:
Charcuterie – The Craft of Salting Smoking and
Rhulman, Michael – Polcyn, Brian
Montanhas Capixabas – Embutidos & Companhia (1)
Mario L.M. de Almeida