A
definição técnica de charcuteria nos conduz ao entendimento de que se trata da
arte de preparar produtos feitos à base de carne ou miúdos de porco, quer os de
fabricação caseira, quer os industrializados, o que não corresponde exatamente à realidade.
Essa associação distorcida da charcutaria exclusivamente à produção de lingüiças
e aos cuidados com a carne de porco, constitui um engano, porquanto
originalmente a contextualização nos remete a preservação de diversos tipos de
carnes, como: aves, bovinos, suínos, peixes e outras carnes de caça, que são processadas
de muitas formas, tais como a salga, conservação, cura, fermentação, cozimento,
desidratação, defumação e, até mesmo, com a conjugação de vários desses métodos,
obtendo-se produtos como salames, terrines, patês, mortadela, pastrame, copa,
bacon, salsicha, lingüiças, presuntos, carnes de sol, bem como todas aquelas
carnes conservadas em gordura ou defumadas.
A
charcutaria surgiu a partir da evolução da humanidade e se desenvolveu com a finalidade de preservação, principalmente das carnes, porquanto inexistia tecnologia ou método de referigeração adequada, que garantissem vida útil longa para os alimentos, representando um dos
mais antigos métodos de processamento que sustentam o gênero humano. A
preservação de alimentos, em especial das carnes, permitiu a humanidade
sobreviver durante períodos de escassez e, mais importante, possibilitou as
longas viagens de migração, onde nem sempre era possível se obter alimentos com
constância e frescos.
As
primeiras informações que se detém sobre a técnica de preservação de carnes,
remonta aos primórdios da civilização humana, quando o caçador abatia um animal
maior do que as suas necessidades, cortava-o em pedaços menores de carne,
temperava com sal e ervas aromáticas e embutia nas tripas e bucho do próprio
animal, previamente lavadas, armazenando para consumir depois.
A
lingüiça, portanto, foi um dos primeiros embutidos inventados, ainda que sem
esse nome “lingüiça”, que tem a ver com a palavra italiana “luganega” e que nos
remete para os Lucanos, um povo de origem samnita, que se estabeleceu na Lucânia
(atual região montanhosa da Itália meridional, a Basilicata), no século V a.C.
Essa civilização tinha forte influência da civilização helênica.
O
poeta Homero, em sua obra "Odisséia", escrita no século IX a.C já mencionava essa
antiga forma de processamento de carne.
Petrônio
(14 a .C –
66 d.C) na obra Satyricon, ao descrever a cena de Trimalchion, verseja: “Umas lingüiças
fumegavam numa churrasqueira de prata, e debaixo da churrasqueira havia
ameixas, damascos e grãos de romã...”. E mais adiante, em outro trecho: “...o
cozinheiro colocou o avental, pegou a faca com a mão trêmula deu vários cortes
na barriga do animal (do porco). Logo depois, pelas perfurações alargadas com habilidade,
começaram a sair, devido a inclinação, pencas de chouriços e linguiças.”
Nas
estradas de acesso à Roma Imperial existiam tendas onde eram vendidas liguiças
de porco assadas em pequenos fogões a carvão.
Quando
Constantino, o Grande (274 – 337) governava Roma, entre 306 e 337, depois de
convertido ao Cristianismo, proibiu o consumo de lingüiça, porque era associada com festivais pagãos. Esta proibição perdurou por todo o seu
governo, sendo abolida depois da sua morte, por causa dos protestos do povo romano.
No
Império Romano eram consumidos diversos tipos de embutidos, que recebiam nomes
como “farcimina”, “hillae”, os “circelli”, os “spirulae” e os “botulus”.
Embutidos ou enchidos, como se diz em Portugal, são
produtos preparados com carne picada, triturada ou em forma de massa, agregada
de temperos, aglutinantes e aditivos e embutida em invólucros naturais e
artificiais, cozidas e algumas vezes defumadas, para consumo frio ou quente.
As técnicas e procedimentos para preparo de embutidos e similares são diversas e podem, em
alguns casos, ser aplicados sequencialmente. Dentre os mais comuns podemos
destacar os seguintes:
Sais de cura – nitrito de sódio e nitrato de sódio
são conservantes aplicados em muitas carnes conservadas, principalmente
nas defumadas, pois evitam a proliferação de bactérias nocivas, como a
causadora do botulismo(intoxicação pela exotoxina de Cloristidium botulinum e
Cloristidium parabotulium).
Sal – O cloridrato de sódio promove um
processo de osmose, salgando e liberando o excesso de água no interior da
carne. Além disso também pode ser usado para frear e regular a fermentação de
alguns produtos. Curar ou preservar
alimentos com sal.
Acelerador de cura – é feito uso de antioxidantes que
reagem com nitratos e nitritos para acelerar e homogeneizar a cor de curado.
Também ajudam a prevenir o ranço. Podemos citar o ácido ascórbico(vitamina C) e
o eritorbato de sódio;
Aromatizantes – pode ser utilizado o açúcar, glicose
ou mel para dar amora, umidificar e auxiliar na obtenção de uma cor mais
aprazível;
Temperos – ervas, pimentas e especiarias, aqui a
única regra é a criatividade, o gosto e o bom senso;
Fermentadores – Muito utilizado em salames especiais,
os fermentadores são aplicados com a salga da carne para remover a umidade,
permitindo que as bactérias benéficas quebrem os açúcares em moléculas
saborosas. Geralmente são usadas culturas de lactobacilos que geram ácidos
graxos;
Defumação – a aplicação de fumaça, tanto quente
como fria, ajuda na secagem e na preservação da carne;
Desidratação – Realizada com exposição direta ao
sol, defumação quente ou defumação fria, exposição à correntes de ar, salga;
Estabilizantes – auxiliam na retenção de líquidos e
gorduras, aumentando o rendimento e peso dos produtos. Temos os fosfatos e
polifosfatos, proteína de soja, gomas(goma-curdlana, goma-arábica, goma-guar,
goma-xantana) dentre outros;
Cocção – muitos produtos são cozidos ou
assados, pois nem sempre é do desejo do charcuteiro aplicar algumas técnicas
por tempo prolongado, como a defumação;
Marinada – normalmente o processo de marinar
envolve também a acidificação da carne. Pois o ácido rompe as fibras da carne,
amaciando e permitindo que o tempero entre para o interior do produto. Pode ser
feita a imersão ou injeção da marinada na carne que descansará em refrigeração
por algumas horas;
Salmoura – A salmoura é uma técnica mais apurada
e lenta, mas traz retornos muito mais satisfatórios que a marinada, pois não
necessariamenteo vai acidificar o produto e trará umidade elevada,
principalmente para carnes muito magras, como peito de frango e partes do
porco, como o lombo.
Cada umas dessas técnicas pode ser discutida, pois as
quantidades, procedimentos, tempos e tipos de carnes utilizadas geram resultados
completamente diferentes, mesmo se aplicando métodos idênticos, o que pode, inclusive, aparentar um alto
grau de complexidade, mas a charcutaria é uma das artes mais simples e belas da
culinária, uma boa carne, sal e paciência já são suficientes para que a
alquimia de sabores e aromas seja contemplada.
Os portugueses produzem uma grande variedade de embutidos,
que não se limitam às “farinheiras”, confeccionadas com farinha, massa de pimentão,
colorau e vinho e gordura de porco, servidas frita ou assada, como complemento
ao cozido ou a feijoada. A farinheira foi criada pelos judeus portugueses
durante a inquisição, como forma de simular o consumo de carne de porco, ou,
ainda, as “alheiras, que, como o próprio nome explica, são elaboradas com pão, óleo
de oliva, bastante alho e carne de porco ou de aves – durante a época da inquisição não era utilizada carne de porco -.
Na região de traz os Montes, no norte de
Portugal, além dos embutidos tradicionais, existem alguns muito especiais, seja
no recheio ou mesmo na possibilidade de criatividade gastronômica, tais como:
O Butelo: Embutido da região de Bragança, utiliza carne de porco com pequenos pedaços de ossos, a carne escolhida é sempre a costela, rica em gordura.
Azedo: Embutido de carne de porco e pão, semelhante as alheiras, possui algumas diferenças nos temperos, menos alho na preparação.
Chourica: Embutido de sabor dorte, com muito tempero, que uriliza carne de porco, orégano, sal, pimenta do reino, água e vinho.
Salpicão:Embutido mais elaborado onde se utiliza lombo de porco e temperos, muito semelhante ao da chourica, porém mais leve em sabor.
Chouriço de Mel: Embutido sem carne, elaborado com umna mistura de nozes, mel, amêndoas, pão e muito pouco sal.
Portugal possui muita tradição na criação de suínos, razão pela qual a qualidade desses produtos preparadas lá é irretocável.
Experimente e delicie-se pedindo um prato de lentilhas cozidas no caldo de
legumes com rodelas de “chouriço” e pedaços de toucinho defumado, por exemplo.
Também naquele país são confeccionadas as famosas “morcelas”, nada mais nada menos que embutidos preparados com o sangue do porco, além da sua gordura, de vinho, alho e pimenta do reino. Uma maneira inusitada de saboreá-la é a morcela frita acompanhada de purê de maçã.
“Na Alemanha são produzidos mais de 1.500 tipos de salsicha (wurst).
Cada região tem a sua peculiaridade, seja no tipo de carne utilizada (de porco,
de vitela ou mista) e nos temperos.
Há festivais os mais diversos quando podem ser experimentadas
algumas das opções existentes e, sempre, acompanhadas por molhos de mostarda
clara e escura e imensos copos de cerveja! Muito comum, ainda na Alemanha, é
comprar em barraquinhas na rua uma porção de salsichas grelhadas e fatiadas,
acompanhadas de catchup picante
e batatas fritas.
Nos Estados Unidos, principalmente em Nova Iorque , os hot
dogs, nossos conhecidíssimos “cachorros-quentes”, são uma opção de
lanche (ou mesmo de almoço!) para milhares de pessoas, diariamente. As
salsichas, levadas da Alemanha para lá no início da década de 1900, fizeram e
ainda fazem muito sucesso, servidas dentro de um pão apropriado e cobertas com
um molho de cebola refogada. Além disso, é uma preparação barata...
Na França vários são os embutidos produzidos, muitos ainda de
forma artesanal, de maneira a preservar todos seus sabores herdados pelas
famílias produtoras e não são muito fáceis de se encontrar aqui no Brasil. Um
deles é a anduille, de carne de porco, alho,
pimenta, cebola e vinho, além de outros temperos. É para ser comida fatiada e
fria, como aperitivo.
Há ainda o boudin blanc, preparado com carne de
porco, vitela ou frango finamente moída, com cebolas, pedaços de pão e creme de
leite, e o boudin noir,
um chouriço preto ou vermelho-escuro, feito com sangue e gordura de porco,
cebolas e creme de leite.
Há também as cervelas, de carne e gordura de
porco, que são fervidas em água e servidas com mostarda e salada de batatas, e
os saucissons: à la cendre, de carne de porco enrolado em
cinzas, de sanglier, feito com carne de
javali, ou o saucisson sec, tipo um salame.
Da região da Bologna vem a famosíssima mortadela, preparada com carne suína moída até se transformar numa pasta, acrescida de gordura também suína em pedaços, e temperada com sal, alho, pimenta e ervas aromáticas (algumas levam, também, pistache ou azeitonas) para então serem cozidas e posteriormente resfriadas e guardadas sob refrigeração.
Uma das maneiras ideais para saboreá-la é cortar em fatias finíssimas e servi-la como recheio de um crocante pãozinho francês. Em São Paulo, no Mercado Municipal é famoso o sanduiche de mortadela no pão francês servido no box do Mané.
Entre as carnes processadas nenhuma se iguala ao presunto cru espanhol "pata negra", não apenas na fama, mas no gosto também. Elaborado com porco ibérico, criados livres, cuja alimentação é especial, tornou-se um requinte nas mesas masi exigentes.
Embora muitos não considerem o presunto propriamente um "embutido", não se pode ignorar a qualidade dessas carnes curadas e salgadas, alguma defumadas, que atendem aos mais exigentes paladares gourmets, porém isso vou deixar para tratar em outro post.
Fontes:
Charcuterie – The
Craft of Salting Smoking and
Rhulman, Michael – Polcyn, Brian
Montanhas Capixabas – Embutidos & Companhia (1)
Mario L.M. de Almeida